ATRAVÉS DO UNIVERSO: van Gogh e as cores da noite
O GEDAI publica o vigésimo primeiro texto da série “ATRAVÉS DO UNIVERSO”, coluna mensal do prof. Domingos Soares (Departamento de Física/UFMG). Conheça mais sobre o autor em sua página eletrônica. Veja os textos anteriores da série clicando neste link.
van Gogh e as cores da noite
14 de novembro de 2019
“— A noite é mais rica em cor do que o dia”, declarou entusiasmado van Gogh, ao terminar em junho de 1888 o seu quadro denominado “Noite de Verão”. Por paradoxal que pareça, a afirmação carrega a — por vezes, insondável — coerência dos gênios.
O holandês Vincent van Gogh (1853-1890) foi um dos maiores pintores de todos os tempos. Os especialistas das Belas Artes o situam no movimento estético denominado “Pós-impressionismo”. Na vida pessoal, van Gogh foi um fracasso, e na vida profissional só teve o sucesso reconhecido após a morte prematura, aos 37 anos. O pintor sofreu de séria moléstia mental, agravada pelo uso de estimulantes, e que acabou levando-o ao suicídio.
As pinturas de van Gogh foram inspiradas por paisagens rurais e urbanas do Sul da França, onde a sua magistral obra de pintor foi realizada. Dentre a sua extensa obra — mais de 70 pinturas —, destacam-se cinco, onde visões do céu noturno mostram astros celestes, sejam eles a Lua, estrelas ou planetas. Como é comum aos não aficionados, estrelas e planetas não são distinguidos, sendo chamados indistintamente de “estrelas”. As obras são as seguintes: “Noite estrelada sobre o Ródano” e “O Café à noite na Praça Lamartine”, ambos de 1888, “A noite estrelada”, de 1889, e finalmente, “Estrada com cipreste e estrela” e “Casa branca à noite”, estes de 1890. Estas duas últimas são as que mostram, de forma bastante conspícua, corpos celestes como participantes ativos na composição do cenário. E a beleza das cenas são tais que despertam em quem as admira a curiosidade sobre a fonte natural de tão bela inspiração.
Quase cem anos depois de sua pintura, a “Estrada com cipreste e estrela” foi admirada por dois astrônomos norte-americanos — Donald Olson e Russel Doescher —, que imediatamente se perguntaram se porventura eles poderiam determinar, retrocedendo à época da pintura do quadro, a identidade dos astros que aparecem na paisagem. A imagem do quadro reproduzida aqui mostra à direita do cipreste, no alto, uma formação circular que lembra uma Lua crescente (no hemisfério Norte). À esquerda do cipreste, um pouco abaixo, vemos outra formação circular, e ainda mais abaixo e à esquerda, outra formação circular menor. O que representam estas formas? Claramente elas representam astros celestes. Mas, que astros, especificamente?
Os astrônomos calcularam a posição dos astros mais brilhantes à época e no local da pintura e descobriram que a Lua crescente compunha com Vênus e Mercúrio, uma configuração bastante apropriada para a inspiração do pintor. Mas havia uma discrepância. Os três astros apareciam na pintura como se tivessem sido invertidos em suas posições no céu, por uma reflexão em um espelho imaginário vertical passando pela Lua! Mas não havia dúvidas de que deveria ter sido esta a inspiração de van Gogh. Ele simplesmente invertera a posição de Vênus e de Mercúrio para satisfazer as necessidades da composição.
Para termos uma ideia, ainda que grosseira, dos cálculos de Olson e Doescher, eu utilizei uma carta celeste eletrônica — disponível gratuitamente na internet —, denominada “Stellarium”. Coloquei a data de 20 de abril de 1890, provável dia da realização da pintura, e as coordenadas geográficas do local, a cidade de São Rémy (longitude de 4 graus e 50 minutos Leste e latitude de 43 graus e 47 minutos Norte). A configuração que obtive, para o instante logo após o por do Sol está mostrada na figura, e ilustra razoavelmente bem a inspiração celeste de van Gogh ao pintar “Estrada com cipreste e estrela”!
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Domingos Soares
FLORESTA COSMOS
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